108. Podemos rezar os salmos de maldição?

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Os salmos de maldição ou de imprecação, como o próprio nome já diz, expressam o desejo de que recaiam males sobre alguém. Um exemplo claro de um salmo de imprecação é o de nº 57 (58). Vejamos:
Fazeis mesmo justiça, ó poderosos?
É segundo o direito que julgais os homens?
Não! Do fundo do coração cometeis crimes;
no país de vossas mãos distribuem a injustiça.
Desde o seio materno os maus se desviaram;
desde o seu nascimento os mentirosos se perdem.
Têm um veneno como o da serpente,
como o veneno da víbora surda que fecha os ouvidos
para não ouvir a voz do encantados,
do mago mais perito.
Ó Deus, quebra-lhe os dentes na boca;
Senhor, parte suas presas de leões!
Que se dissipem, como água que corre,
que sequem como o mato que se pisa.
Como a lesma que se derrete e some,
como o abortivo que nunca viu a luz do dia.
Antes que cresçam, sejam extirpados como o espinho,
sejam ceifados como o mato que o vento carrega.
O justo se alegrará ao ver a vingança;
lavará seus pés no sangue dos maus.
Dirão: “Sim, existe recompensa para o justo;
existe um Deus que governa a terra!”
Diante desse conteúdo é lícito ao católico rezar esses Salmos? Trata-se de um tema aparentemente controverso. O Papa Paulo VI quando promulgou a Liturgia das Horas, excluiu alguns Salmos e versículos, conforme explica no nº 131 da Instrução Geral Sobre a Liturgia das Horas:
“Os três salmos 57, 82 e 108, em que predomina o caráter imprecatório, foram suprimidos do ciclo do Saltério. Foram igualmente suprimidos certos versículos dalguns outros salmos, como se indica no princípio do salmo respectivo. A omissão destes textos foi motivada por uma certa dificuldade de ordem psicológica, muito embora os próprios salmos imprecatórios figurem na piedade do Novo Testamento, p. ex., em Ap 6,10, sem que de maneira alguma pretendam induzir a maldição.”
A “dificuldade psicólogica” mencionada pelo Papa Paulo VI nada mais é que a dificuldade em coadunar tais Salmos e versículos à fe cristã. O fiel precisaria aprender a interpretar os Salmos da maneira correta, ou seja, de forma cristológica. A mesma Instrução ensina como ler e meditar os Salmos.
“109. Quem salmodia em nome da Igreja deverá captar o sentido pleno dos salmos, particularmente o sentido messiânico, pois foi este o que levou a Igreja a adotar o Saltério. Este sentido messiânico aparece-nos em toda a sua clareza no Novo Testamento, e o próprio Cristo Senhor o apontou expressamente aos Apóstolos quando lhes disse: «É preciso que se cumpra tudo quanto está escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos» (Lc 24,44). Exemplo conhecidíssimo deste sentido messiânico, temo-lo naquele diálogo referido por S. Mateus a respeito do Messias, Filho de David e seu Senhor, em que o salmo 109 é aplicado ao Messias. Nesta mesma ordem de ideias, os Santos Padres admitiram e explicaram todo o Saltério como profecia referente a Cristo e à Igreja. E é dentro deste mesmo critério que os salmos têm sido utilizados na sagrada Liturgia. E, se bem que, por vezes, se tenham aceitado interpretações algo retorcidas, no geral, é legítima a interpretação quer dos Padres quer da Liturgia, que nos salmos ouviram Cristo a clamar ao Pai ou o Pai a dirigir-se ao Filho, ou reconhecem neles até a voz da Igreja, dos Apóstolos e dos Mártires. Este método de interpretação também floresceu durante a Idade Média. De fato, numerosos códices do Saltério escritos nesta época, no título anteposto a cada salmo era apontado, para uso dos que os rezavam, o sentido cristológico. Esta interpretação cristológica não se restringiu unicamente aos salmos considerados messiânicos, mas estendia-se a muitos outros casos, num sentido acomodatício é certo, mas aceite pela tradição da Igreja. Na salmodia dos dias festivos, de modo particular, foi o sentido cristológico que presidiu à escolha dos salmos. Este sentido é com frequência posto em relevo nas antífonas, tiradas dos mesmos salmos.”
Portanto, os Salmos devem ser lidos de forma cristológica, ou seja, a partir de Cristo, a partir de uma espiritualidade do Novo Testamento. É por isso que todos os Salmos, na Liturgia das Horas, são precedidos de um versículo bíblico do Novo Testamento, para recordar ao orante que aquele texto, oriundo do Antigo Testamento, deve ser lido sob a ótica do Novo Testamento.
Sendo assim, é possivel sim ler os Salmos imprecatórios, mas não como maldição. A leitura deles deve ser dupla: todas as vezes que se deparar com um versículo imprecatório, este deve ser aplicado ao Inimigo de Deus, ou seja, àqueles que já estão condenados, quais sejam, os anjos, os demônios. Estes Salmos são, portanto, um combate entre o Inimigo e os homens, na luta contra o pecado.
Além do mais, os católicos nunca lêem a Bíblia ao pé da letra e, muito menos, o Antigo Testamento. Para saber como se deve ler as passagens obscuras da Bíblia, como essas, e da relação entre o Antigo e o Novo Testamento, o Papa Bento XVI ensina na Exortação Apostólica Verbum Domini:
“42. No contexto da relação entre Antigo e Novo Testamento, o Sínodo enfrentou também o caso de páginas da Bíblia que às vezes se apresentam obscuras e difíceis por causa da violência e imoralidade nelas referidas. Em relação a isto, deve-se ter presente antes de mais nada que a revelação bíblica está profundamente radicada na história. Nela se vai progressivamente manifestando o desígnio de Deus, actuando-se lentamente ao longo de etapas sucessivas, não obstante a resistência dos homens. Deus escolhe um povo e, pacientemente, realiza a sua educação. A revelação adapta-se ao nível cultural e moral de épocas antigas, referindo consequentemente fatos e usos como, por exemplo, manobras fraudulentas, intervenções violentas, extermínio de populações, sem denunciar explicitamente a sua imoralidade. Isto explica-se a partir do contexto histórico, mas pode surpreender o leitor moderno, sobretudo quando se esquecem tantos comportamentos «obscuros» que os homens sempre tiveram ao longo dos séculos, inclusive nos nossos dias. No Antigo Testamento, a pregação dos profetas ergue-se vigorosamente contra todo o tipo de injustiça e de violência, colectiva ou individual, tornando-se assim o instrumento da educação dada por Deus ao seu povo como preparação para o Evangelho. Seria, pois, errado não considerar aqueles passos da Escritura que nos aparecem problemáticos. Entretanto deve-se ter consciência de que a leitura destas páginas requer a aquisição de uma adequada competência, através duma formação que leia os textos no seu contexto histórico-literário e na perspectiva cristã, que tem como chave hermenêutica última «o Evangelho e o mandamento novo de Jesus Cristo realizado no mistério pascal». Por isso exorto os estudiosos e os pastores a ajudarem todos os fiéis a abeirar-se também destas páginas por meio de uma leitura que leve a descobrir o seu significado à luz do mistério de Cristo.”
A primeira atitude, portanto, é a de utilizar os Salmos e versículos imprecatórios contra o demônio, contra o pecado. A segunda atitude - que também é corroborada pelos Santos Padres - é a de ler esses textos não como maldição, mas como profecia do que acontecerá com os maus quando chegar o Juízo Final. Não devem ser atribuídos a outra pessoa, mas a si próprio. E, por meio deles, dar graças a Deus pela misericórdia, pelo amor, pela conversão, pelo chamado que Deus proporcionou, pois, não fosse isso, o destino seria o Inferno.
Quando passar o tempo da Paciência, Graça e da Misericórdia que vivemos hoje e nos depararmos com o Justo Juiz e a sua consequente Justiça, aqueles que O rejeitarem serão tratados como narram os salmos imprecatórios. Que Deus nos conserve com os olhos sempre atentos no reto caminho e que esses salmos nos lembrem sempre do fim que nos aguarda, caso nos desviemos dele.
http://padrepauloricardo.org/episodios/podemos-rezar-os-salmos-de-maldicao


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